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O SISTEMA #04 | Xeque-mate - Uma criança na Cracolândia

O Cavalo pode andar assim...

O Bispo só pode andar na diagonal...

A Rainha pode andar assim...

Assim...

Assim... E só.

Minha Rainha estava aqui,

Cuitelinho estava aqui, e eu tinha que fazer assim.

Se ele viesse para cá, minha Rainha ia comer aqui.

Se ele viesse assim, meu Bispo ia comer assim.

Para cá, minha Torre também ia comer assim.

Não tinha como ele sair, ué.

Xeque-mate.

O número de mulheres aqui na Cracolândia tem aumentado.

Cerca de 70% delas afirmam ter sofrido algum tipo de violência física.

44% foram abusadas sexualmente.

Nesse cenário, o risco de gravidez é muito alto.

17% estão grávidas.

Eu estou aqui no Centro de São Paulo para falar dessa realidade.

Esse é um predinho que fica no coração da Cracolândia.

Nós vamos ver como a Keiti vive aqui com o marido e o filho de nove anos de idade.

Quando é que você começou a usar assim com...

Frequente mesmo, que eu conheci o crack, foi aos 18 anos.

-Começou a usar direto. -Comecei a usar direto, quando eu caí em mim eu já estava conturbada.

Eu já tinha esquecido tudo, estava em outro mundo.

Eu tinha abandonado meus filhos.

-Quantos filhos você tinha aos 18 anos? -Olha, na verdade, aos 18 anos eu já tinha três. Eu tive o Kennedy, que é o meu filho mais velho, que tem 26 anos, depois eu tive o Luiz que tem 25 e a Kemilly que tem 24.

-Uma escadinha, um por ano. -É, tive três.

Aí depois eu tive o último, que é o John Nicolas, que é do meu segundo casamento.

E do meu último casamento eu tive nove, que eu estou com o Robson agora há 18 anos.

-Quantos filhos no total? -No total, assim, que eu tive, foram 14. Mas vivos, tenho sete.

No geral, as mulheres ficam muito vulneráveis aqui, principalmente à situação de violência sexual por parte dos homens.

As mulheres, a população de rua em geral e as mulheres usuárias de drogas, ficam nessa situação, mais expostas.

E elas são muito ariscas ao acesso do serviço de saúde, principalmente quando elas estão grávidas, porque elas têm muito medo de perder o bebê, de ser retirado o direito delas de ficar com o bebê depois que o bebê nasce.

Nós sabemos, sim, que na Cracolândia moram nos pequenos hoteis, nas pensões, nas residências, nos cortiços, nos vários locais que tem lá.

E, também, que mães tem seus filhos que elas cuidam, mesmo mães que costumam ir para o fluxo, mas saem do fluxo e cumprem os seus compromissos maternos.

Com o Cauê, aconteceu a situação que, depois que eu vim para cá, eu morei no "Hotel do Zezinho 2", a ROTA entrou lá e pegou meu filho, com um mandado de busca e apreensão, seis horas da manhã.

Bateram na minha porta: "Oi, tudo bem?

Mandado de busca e apreensão. O Cauê está?"

"Está. Um momentinho, vou colocar uma roupa."

"Não, não. Abre a porta."

Abri, eles já entraram algemando o Cauê,

-mandando colocar algema. -Algemaram o Cauê?

-É, algemaram. -Com que idade?

Ele tinha sete anos. Isso faz dois anos.

Mas aí passaram 20 dias, eu comecei a erguer as mãos, fui trabalhar. Um tal dia, eu estou trabalhando e a assistente social chegou em mim: "Nossa, você já viu o Cauê?"

"Meu filho está no abrigo."

"Imagina, seu filho acabou de sair do abrigo."

"Como?" "Ele fugiu.

Ele fugiu do abrigo."

-Que idade ele tinha? -Ele tinha oito anos

-quando fugiu do abrigo. -Mas fugiu como?

-Tão pequenininho? -Ele fugiu.

Ele saiu do abrigo aqui da Rua dos Italianos, pegou um molho de chaves, jogou embaixo da mesinha e foi embora. Ele e mais cinco crianças.

Então você já esteve em três abrigos, Cauê?

Onde eram esses abrigos?

O mais chato foi o primeiro.

O segundo mais chato foi o último.

-O mais legal foi o segundo. -E te tratavam mal?

-O que eles faziam? -Me queimavam com cigarro...

Quem que queimava, era uma mulher do abrigo?

-E você chorou? -Não... só doeu.

Ela falou: "Desculpe, não era de maldade."

Mas eu sabia que era de maldade, porque ela enfiou com tudo.

Foi no bumbum. Ficou até a bolinha.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição Federal, eles tratam da proteção integral, quer dizer, essa criança tem que ser protegida de todas as formas de risco. E certamente, conviver com pessoas que fazem uso de drogas configura uma grave situação de risco.

Toda semana, são dois ou três bebês que dão entrada em maternidades e que depois esses bebês ficam abandonados, e os processos vão para a Vara da Infância e Juventude.

Lá tem tênis de mesa... várias coisas.

Esporte, nadar, futebol, xadrez, dama...

Keiti, como você ganha a vida hoje?

Olha, na verdade, assim. Às vezes eu só faço uma faxina e cobro 50 reais. Às vezes, para ficar com uma criança, mais 50.

Então assim, eu sempre tento "ajuntar" um pouco, entendeu? Às vezes até mesmo vou no mercado.

Falam: "Ai, a Keiti vai no mercado." Eu digo a você que meu mercado é na Cracolândia. Eu espero algum dependente químico vir com alguma bolacha ou creme pra eu poder comprar para o meu filho. Às vezes eu consigo fazer por mês, tirando meu "Bolsa Família" e minha renda, dá para juntar uns 400 reais.

E quando tem essas confusões lá, que começa, que vem a polícia,

-estoura bomba? -É... o nome é...

-"operação". -Operação.

O que aconteceu: houve uma piora muito grande dessa questão de segurança.

Nossos agentes não conseguiam mais entrar.

Houve uma piora. Então no dia 21 de maio houve um enfrentamento da polícia, a polícia entrou com 92 mandatos de prisão. E aí a coisa mudou.

Porque aqueles quatro quarteirões foram esvaziados e nós conseguimos agir de uma forma muito melhor.

Mas o que acontecia?

No dia seguinte, não se fazia mais nada.

Entendeu? Chegava, fazia aquela correria, no dia seguinte, o Estado desaparecia.

Então nós aproveitamos para entrar no local.

Mas assim, no decorrer, todo dia de manhã quando eu acordo ele para ir para a escola, primeira coisa, eu me deparo com a janela.

Aí já saio, falo um bom dia e abro essa janela, que é imensa.

Aqui a gente vê o dia a dia da Cracolândia, se realmente está tudo perfeito e aí já começa.

Lá é de frente para a praça, eu fico: "Ah, que bênção."

Mas quando começa aquele conflito, que eu vejo que está aquele cheiro de fumaça, a única defesa é o Cauê fazer isso aqui, a gente se esconde...

Eu fico atrás da porta.

Porque a gente tem medo de uma bala perdida, de vir a acontecer algo.

Ele fica igual a um cavalinho: "Mãe, corre! A bala!"

Não pode mais fazer barraca, nós não deixamos mais.

Aquilo é limpo três vezes por dia, com esguicho.

Todo mundo tem que sair, limpa com esguicho, próprio para causar desconforto.

Agora nós estamos fazendo uma limpeza às duas da manhã.

Duas da manhã, uma limpeza na rua.

Entendeu? Para causar o desconforto.

E agora, como é a sua vida? Você acha que é boa a sua vida?

-Não, é ruim. -É ruim?

Por que é ruim, Cauê?

Porque eu quase não faço nada de bom.

-E de ruim, o que é que tem? -Tudo.

Menos a comida.

A comida é boa?

Como é que você gostaria que fosse a sua casa?

Grande...

Quantos quartos tinha que ter a casa para você estar bem?

Dois. Um da minha mãe e um meu.

Da tua mãe e o teu.

Aí tinha escada, o sofá, a sala, a cozinha, e só. E o banheiro.

Essa era uma casa boa para você?

Tudo junto?

Eu quero saber o seguinte: quem é a pessoa que você mais gosta na sua família?

-Meu avô. -Seu avô?

Por que você gosta mais dele?

-Porque ele é legal. -Ele é legal?

Te leva para passear?

Mas ele vem só de vez em nunca.

Esses meninos que estão jogando bola, você joga com eles ou não?

Só com o que tá com a camisa do Barcelona...

Preto e branco... o que está de vermelho e azul.

Vamos dar um pulinho lá?

Vamos até lá.

Eu acompanho a epidemia de crack desde 1992, que foi o ano que o crack entrou e se espalhou pelo Carandiru.

O presídio inteiro fumava crack. É muito duro você ver essas pessoas se destruindo por causa de um uso compulsivo de uma droga.

Mas para mim, o aspecto mais triste é o dessas meninas que engravidam fumando crack.

Nós temos que encontrar métodos de contracepção que impeçam essas gestações.

Essas mulheres não ficam grávidas porque querem experimentar os mistérios da maternidade.

Elas ficam grávidas porque vivem nessa situação de risco. É inaceitável.

Escolhe uma carta e guarda para você.

Não fala qual é, não fala.

Escolhe só uma. Escolheu?

Sua carta vai aparecer.

Não fala qual é, só vê em qual monte ela vai parar.

Vou fazer isso três vezes para achar a sua carta.

Qual monte?

Um, dois, três, quatro, cinco...

Muito bem!

-É essa carta, mesmo? -É.